Do Mais Profundo do Meu Coração Para Minha Mãe Yeshe
Chögyal Namkhai Norbu
Prefácio
Esta breve composição, escrita por Chögyal Namkhai Norbu, aos 19 anos, compreende em poucas páginas o ponto de vista e a prática de meditação do ensinamento Dzogchen. Dirigido a sua mãe pelo autor no momento de sua última despedida, é impactante pelo frescor e profundidade de sua linguagem, e por ser isenta de especulações intelectuais e artifícios retóricos. É uma mensagem direta de coração a coração. Comunica a essência da iluminação que emerge ao observar a natureza da própria mente, a sabedoria espontânea que se manifesta como compaixão infinita a todos os seres, as nossas mães.
Adriano Clemente
Mãe, a mente, a mente! Essa mente da qual sempre falamos, que parece tão viva e ativa, teve início junto com Samantabhadra, o Senhor Primordial. Reconhecendo sua natureza, Samantabhadra se liberou. Não a reconhecendo, começamos a transmigração no samsara infinito. Agora que uma ocasião tão afortunada de apresentou, sem buscar pretextos externos, sem nos deixar capturar pelas oito preocupações mundanas, deveríamos abrir nossos olhos à visão de nossa condição real e compreende-la de uma vez por todas.
Existe uma condição natural, auto originada, a essência verdadeira e ultimada mente: se a deixamos em seu estado da pura presença instantânea, sem buscar modificá-la de nenhum modo, então sua sabedoria espontânea e primordial se manifestará em forma desnuda. O que constitui a sabedoria auto-originada da pura presença instantânea?
Não importa quanto queiramos defini-la, é inefável. Nunca teve início, não reside em nenhuma parte, não conhece interrupção. Não cabe em nenhum dos limites do dualismo, nem ser nem não ser, bom ou mau, apego ou aversão, nem liberação ou ilusão. Sua essência tem sido sempre a pureza da vacuidade, que a tudo penetra, totalmente. Sua natureza é a claridade, que possui as qualidades da sabedoria em um estado de auto-perfeição total. Presença instantânea, a não-dualidade da vacuidade da essência e a claridade da natureza, é o estado de pureza primordial que é a base da manifestação das três dimensões da iluminação: dharmakaya (essência), sambhogakaya ( plenitude) e nirmanakaya (manifestação). O verdadeiro reconhecimento desse estado é o que se chama “a visão da total plenitude da auto perfeição”.
Quero tratar de ser mais explícito. Se olharmos um objeto a nossa direita e logo desviamos nossa visão a um objeto a esquerda, no momento no qual nosso primeiro pensamento se desvanece e, antes que surja o segundo, não sente uma fresca consciência do instante, sem ser manchada pela mente, clara, límpida, desnuda, livre? Permanece por um tempo em meditação, mãe, e observa!
Ai! Este é um exemplo da autentica condição da presença instantânea, e também o que se chama “a igualdade absoluta do quarto tempo”, que transcende os três tempos de passado, presente e futuro. No momento no qual já não permanece neste estado, o qual representa a absoluta igualdade do quarto tempo, não surge um pensamento, rápido e espontaneamente? Fica um tempo em meditação, mãe, e observa!
Ai! Isto é exatamente o que se chama de energia ininterrupta da vacuidade, que é a essência da presença instantânea. Se não reconhece o pensamento logo surja, então os pensamentos se multiplicarão de um modo ordinário, e assim caíra nos limites do dualismo. Esta é a corrente da ilusão, a verdadeira raiz de nossa transmigração sem fim na visão ilusória dos três mundos da paixão, forma e não forma.
Mãe, quando um pensamento nasce repentinamente em ti, seja bom ou mau, reconheça-o imediatamente!Esteja na presença pura, relaxada neste estado, sem entrar em ação: sem rejeitar ou aceitar, sem bloquear nem convidar. Deste modo, se não cria o apego que leva a rejeição e aceitação, todos os pensamentos sobre bom ou mau, prazer, tristeza e outros livremente se dissolvem no espaço da dimensão da essência (dharmakaya), a não-dualidade de presença e vacuidade. Isto se chama “a união fundamental do ponto de vista e da meditação” na dissolução das tensões (khregs chod) da total plenitude da auto-perfeição.
Quando todas as dúvidas e incertezas a respeito do ponto de vista da natureza da total plenitude se dissolvem a partir de dentro, então continuar neste estado se chama “meditação”. Ao não perder o ponto de vista do estado natural, se necessita relaxar a consciência dos cinco sentidos, começando pela visão e audição, sem bloquear estas funções, enquanto permanece serena. Se as diversas funções dos cinco sentidos se bloqueiam, isso significa que caiu em torpor e em falta de claridade. Neste caso tem de voltar à própria condição mais límpida, mais transparente.
Se meditar com um objetivo em mente, há grande risco de que a meditação se torne conceitual ou analítica. A pessoa não deveria, então, meditar com a intenção de poder dizer: “Aqui está, este é o estado!” Ter algo “no qual” meditar implica atividade da mente, enquanto não há realmente nada em que concentrar-se e meditar. É suficiente somente deixar a consciência em seu estado original e, ao mesmo tempo, não se deixar distrair. Já que a distração é equivalente a cair na ilusão, é importante focalizar a atenção em não deixar que se multipliquem as ilusões. Qualquer que seja o pensamento que surja, seja este bom ou mau, nem o rejeite nem o aprove, mas sim deixe que se libere do mesmo modo em que surgiu.
Qualquer seja o pensamento que surja, bom ou mau, deixa-o manifestar-se, mas não se envolva começando a realizar juízos. Os pensamentos deixados como são se auto-liberam em seu próprio estado, tal como as ondas, logo ao terem se agitado na superfície do mar finalmente se acalmam. Alguns que se dizem grandes meditadores afirmam que a meditação consiste em deter os pensamentos e obter um estado livre de pensamentos, mas essa é a direção oposta ao caminho de dissolver as tensões em total plenitude. Deter os pensamentos é uma ação. Comprometer-se em uma ação enquanto se medita, pode tornar-se a causa posterior de transmigração; não é em absoluto o modo de se liberar do samsara.
Portanto, quando surge um pensamento, bom ou mau, a chave é continuar em um estado de pura presença ou pura claridade, sem envolver-se absolutamente em nenhuma das ações que derivam tanto de bloquear como de multiplicar os pensamentos. Quando se continua neste estado, qualquer que seja o objeto que se apresente não se converte em alvo de nosso apego. Nossa percepção de tal objeto permanece em sua condição fresca, original. Portanto todos os fenômenos que aparecem como objetos se manifestam sem que seu caráter específico se transforme ou perca seu brilho por pensamentos derivados do apego. Deste modo, tudo o que aparece e se percebe se torna essa sabedoria que é a não-dualidade da vacuidade e claridade.
Este reconhecimento do próprio estado, o qual é a condição da claridade pura e presença pura, deveria tornar-se contínuo, qualquer que seja a atividade diária em curso: enquanto se caminha, enquanto se come, enquanto se está sentado, enquanto está deitado e assim
sucessivamente. Se surge um pensamento ligado a uma emoção ou paixão, por exemplo, um prazer ou um pesar, a algo bom ou, ao contrário, mau, não ceda à noção de ter de rejeitá-lo ou achar um antídoto. A sensação de prazer ou pesar, se a observa e a deixa em sua pureza e desnudes, se dissolve do mesmo modo que surgiu.
A causa principal de nossa transmigração, aquilo que tem girado incessantemente a roda do samsara desde o tempo sem começo até hoje, é feita de nossa inclinação inconsciente ao dualismo. Por tanto, abandonando para sempre tanto as preocupações externas, como as atitudes de espiritualidade simulada, agora que teve a suprema boa fortuna de conhecer frente a frente a dimensão que é a essência (dharmakaya) da presença instantânea, aproveita a ocasião e volta ao profundo estado natural no qual todos os conceitos de rejeição e aceitação purificam a si mesmos na sua própria condição.
Possa o significado último do estado de Atiyoga
Surgir perfeitamente em ti, mãe Yeshe!
E possam todos os seres que tenham contato contigo
Liberar-se no estado primordial de Samantabhadra!
Isso foi escrito pelo dzogchenpa Namkhai Norbu em Lhasa, no vigésimo quinto dia do primeiro mês do ano do cachorro de terra, 2.502 anos depois do paranirvana de Buddha (março de 1958), no momento de separar-se de sua mãe.
Tradução: Jimmy Jacques
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