Autor: Goura Nataraj Das
É comum entendermos o yoga, bem como toda manifestação cultural diferente da nossa, de acordo com nossos próprios padrões de percepção do mundo. Vemos desta forma que toda prática de ascese, de purificação, de busca da iluminação que é expressa pela palavra yoga, costuma ser entendida de forma leviana ou tem sua importância minimizada. No fundo, é simplesmente mal-compreendida. Ou, melhor dizendo, não encontra ouvidos adequados para sua mensagem. Nós, os yogins, muitas vezes nos satisfazemos com a manutenção do bem-estar, a eliminação de alguns estados doentios da mente e do corpo e o restabelecimento de um certo equilíbrio em nossa vida psíquica e física. Ir além disto, colocar a ênfase nos aspectos mais críticos e profundos do yoga, não costuma ser algo feito ou objeto de estudo.
No entanto, ao fazermos este procedimento retiramos a essência da pratica do yoga e mantemos apenas sua forma externa, sua cobertura. Pois a essência das coisas esta nelas como as sementes de um fruto para o fruto inteiro. Das oito partes do yoga (aṣtānga yoga) descritas no Yoga Sutra, ficamos, quando muito, com uma ou duas e fazemos incursões aleatórias e descomprometidas nas demais que são, apesar disto, o verdadeiro objetivo da prática. O caminho óctuplo inicia nas prescrições e proscrições morais, segue nas práticas de purificação e fortalecimento do corpo e mente, e prossegue nas técnicas de meditação.
É imperativo reconhecer o yoga como um processo de despertar de nossa verdadeira natureza (svārupa – a razão seminal de nossa existência) e de questionamento sobre o propósito, a origem e a dissolução da existência.
Na filosofia estóica dois valores aparecem como a meta dos esforços dos pensadores: a liberdade e a felicidade. Acredito que podemos também aplicar tal consideração quando refletimos sobre o yoga. A libertação dos condicionamentos e das misérias, bem como a realização da mais profunda felicidade, também são metas de um yogi. Para tentar comprovar isto basta observarmos o valor que o yoga concede a termos tais como mokṣa (liberdade), kleṣa (sofrimento) e ānanda (bem-aventurança).
É um grande abismo que separa estas concepções daquelas outras tão vigentes nos dias de hoje, que vêem o yoga, ora como uma anestesia espiritual, um calmante, um sedativo usado para ajudar as pessoas a lidarem com as dores e ansiedades do mundo, mas sem se preocuparem em questionar a causa, sem instigar mudanças, críticas e transformações; ora como um método de potencialização do poder de desfrute, a forma comum do feroz hedonismo dos tempos modernos, o assim chamado tantra da pós-modernidade, que distorce conceitos, confunde coisas com as quais não está, de forma alguma, familiarizado e persevera na manutenção de padrões alienados de vida. Aquele que vai entrando no universo do yoga logo vai se deparando com tais questões e reconhecendo a natureza e as dificuldades inerentes do projeto no qual está embarcando.
Defendemos, contudo, a necessidade de um questionamento constante sobre a maneira pela qual interpretamos o yoga. O verdadeiro yogi está, até certo ponto, num embate com o mundo. Na verdade, o sentimento do yoga tal como todo sentimento filosófico nasce de uma inquietude com a realidade, um desconforto e uma desconfiança com a norma vigente e com as formas de interpretar esta norma. O yogi declara guerra à ignorância, à ilusão, e desta forma não consegue mais sentir-se plenamente a vontade co-habitando na mentira, dividindo seu espaço com ela. Como afirma Kṛṣṇa na Gītā:
"Aquilo que é noite para todos os seres é a hora de despertar para o auto-controlado; e a hora de despertar para todos os seres é noite para o sábio introspectivo."
Numa sociedade que não está preocupada de fato em questionar as origens e causas da existência, que não valoriza a evolução espiritual e que coloca toda sua escala de valores numa balança que pende sempre para o lado de um materialismo cego e antropofágico, que exige constantes e crescentes sacrifícios para que possa se manter em movimento, toda preocupação com o espírito, a crítica, a criatividade, a paz mental e o contentamento, coisas que contradizem a ética predominante do trabalho e da produção, é uma manifestação de oposição.
Ou como diz Herman Hesse:
“À nossa falta de inclinação para ganhar dinheiro e para empreendimentos materiais corresponde, em nossos antípodas – os empresários e agiotas – à ausência de uma dimensão poética da alma.”
Yoga é na Bhagavad Gītā um ato de retirar-se em si, de conquista de si. Em sânscrito podemos pensar no composto Ātmavan. ātma é o ser, o eu transcendental, e van um sufixo que indica posse, como em śrāddhavan, o que tem fé. Ātmavan é aquele que é senhor de si, que não se perdeu, que realizou o ātma, que alcançou o conhecimento e a realização do ātma. Isto pode nos trazer a mente algumas questões percorridas por Foucault. O filósofo francês Michel Foucault deu uma série de aulas na década de 80 na qual retomou um questionamento antigo, dos gregos e romanos, sobre um termo que ele traduziu como ‘cuidado de si’.
“O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e o que se passa no pensamento.”
Trata-se de uma mudança de foco, de um redirecionamento da consciência. Ao invés de se deixar levar cegamente pelos chamados dos objetos dos sentidos, de tudo aquilo que está fora de nós, do mundo de nomes e formas, o sujeito passa a tratar com mais consideração o seu universo interno e a relação que as coisas do exterior tem com as ‘coisas’ do interior. O cuidado de si é expresso ainda em varias fórmulas tais como ocupar-se consigo mesmo, retirar-se em si mesmo, sentir prazer em si mesmo, permanecer em companhia de si mesmo, ser amigo de si mesmo, estar em si como numa fortaleza, respeitar-se, etc. Alguém poderia argumentar contrariamente: ‘Trata-se, então, de um culto ao ego?’ A resposta é que o voltar-se a si é sempre entendido de forma positiva, não é questão de incapacidade de se posicionar no mundo, de frustração ou de uma rebeldia sem sentido. A mesma idéia que aparece, como vimos acima, na Gītā.
Voltar-se a si é o movimento de busca da identidade verdadeira do ser. É a recusa às respostas formatadas e vazias que recebemos de todos. Imaginemos um teatro onde os atores, de tanto executarem inúmeros papéis, já se perderam e não sabem mais quem são. Isto é o mundo em que vivemos. Os papéis que representamos na vida e através dos quais costumamos nos definir são transitórios e não preenchem todas as potencialidades de nosso ser; quando perguntamos a alguém: ‘Quem é você?’ – a resposta normalmente virá como uma expressão desta ignorância – ‘sou um homem brasileiro’, ‘tenho 47 anos’, ‘sou a mãe de 2 filhos’, ‘sou um professor’, ‘sou um atleta’, etc. Como se os papéis de um ator o definissem!
De fato é difícil pensar em respostas positivas, pois quando vamos retirando o que é contingente, o que não é necessário, pouca coisa, ou quase nada, resta. É por isto que Śankara (788-820) e outros mestres disseram que o ātma, o ser, é definido pelo que ele não é: ele não é isto que é limitado pelo corpo e pela mente; ele não é isto que nasce, cresce, envelhece e morre.
Os versos do Nirvana de Śankara desenvolvem esta idéia:
'Não sou mente nem razão, não sou ego, não sou audição, nem paladar, olfato e nem visão; não sou espaço nem terra, não sou fogo nem ar. Eu existo em plenitude, em forma de consciência e felicidade' (Nirvana Ṣatkam)
O yoga afirma que a causa do sofrimento do ātma no mundo material é seu afastamento, sua ruptura com a realidade suprema. Os devotos de Kṛṣṇa pensam na separação entre Rādhā e Kṛṣṇa, como o símbolo da alma que anseia pelo amor e liberdade da união com o ser amado. Os devotos de Śiva talvez recordem da união entre Śiva e Śakti, representada muitas vezes no ato da cópula. Os estudantes do vedanta meditam na relação da consciência individual (ātma) com a consciência cósmica (paramātma).
Em todo caso, o sentimento de separação nasce da ignorância do que somos, de nossa identidade primeira, e é nossa ruptura rumo ao limitado, finito e individual. Em Schopenhauer esta ignorância recebe o nome de vontade, a fome infinita que caracteriza todas as coisas. Confundido pela situação de apego e aversão, de querer e não-querer, o sujeito nasce sem saber o que deve fazer ou o que deve conhecer. Sofre no mundo dos nomes e das formas.
Em ultima análise o mundo é aquilo que projetamos ou queremos que ele seja. Não existe mundo sem projeção, sem representação, sem interpretação. Uma pessoa que por seus condicionamentos vê uma sombra trágica em todos os acontecimentos, não irá ver o mundo de outra forma. Outro pode observar o mundo como uma comédia e toda tragédia apenas como aparência. Schopenhauer vai afirmar, desta forma, a ‘terrível verdade’ de que ‘o mundo é a minha vontade’. Ou seja, que de acordo com meus desejos irei ter um mundo, o meu mundo. A percepção que temos das coisas está ligada com a maneira pela qual travamos um contato com elas. A interface do sujeito com o objeto se dá pela vontade, esta define e orienta o sentido da ação do indivíduo. Lembrando de Epiteto: “O que perturba os homens não são as coisas, mas o julgamento que fazem sobre as coisas”.
Assim, vemos com clareza por que o yoga propõe uma revisão de nossos desejos, uma purificação dos elementos do corpo e a eliminação de preconceitos, pensamentos dogmáticos e condicionamentos de toda espécie. Tais atividades e posturas não possibilitam um conhecimento que não esteja condicionado pela vontade, diria Schopenhauer, ou pela ignorância, diriam os vedas.
Tarefa fácil? Não. Nem um pouco. Mas a única digna de receber a maior parte de nossos esforços. Pois colocando a ênfase no essencial ou necessário, o secundário ou contingente se manifesta como conseqüência. Num mundo onde as pessoas procuram esquecer de si com cada vez mais freqüência, onde a alienação se torna a regra, o medo e a insegurança prevalecem e os relacionamentos são cada vez mais pautados pela superficialidade e hipocrisia, buscar o desenvolvimento de nossa ‘paisagem interior’ é estar em franca oposição à tudo aquilo que empobrece o espírito. O yoga se torna e se traduz como resistência.
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